Arte-Educação: Cultura e Autonomia

Por Murilo Giaccheri,

Contrária às perspectivas tecnicistas e utilitárias, a concepção de uma educação voltada para a formação crítica e autônoma dos educandos tem sido o principal mote do Projeto Jovens Caminhos. Uma realização do Instituto GEA – Ética e Meio Ambiente, que conta com a parceria do Lassu- Laboratório de Sustentabilidade da Escola Politécnica da USP e é desenvolvido com recursos da Petrobras, o projeto oferece cursos profissionalizantes em duas áreas do conhecimento: Programação/Desenvolvimento de Sites e Arte-Educação/Grafite, em onze comunidades periféricas dos municípios de Mauá e Santo André, somados a um programa de oficinas pautadas pelas temáticas contemporâneas de cidadania, meio ambiente, valores éticos e direitos humanos. Tendo como finalidade a qualificação profissional dos alunos, jovens a partir de 16 anos e adultos das comunidades atendidas, as oficinas de cidadania realizadas ao longo dos cursos acrescentam a conscientização socioambiental à mera capacitação técnica, buscando formar profissionais capazes de se reconhecerem no mundo como agentes transformadores.

Neste artigo, trataremos em especial do curso de Arte-Educação/Grafite, pelo seu ineditismo e fortalecimento da Cultura das Ruas.

Nesse escopo, o curso de Artes, especializado em Grafite, apresenta uma série de pontos que contribuem metodologicamente para a prática de uma pedagogia crítica, autônoma e transformadora, utilizando as artes como principal vetor. Este artigo contemplará a exposição e análise dessa metodologia, propondo reflexões relevantes para projetos e iniciativas similares.

“Quando o homem compreende a sua realidade, pode levantar hipóteses sobre o desafio dessa realidade e procurar soluções. Assim, pode transformá-la e o seu trabalho pode criar um mundo próprio, seu Eu e as suas circunstâncias.” [1]

O curso de Artes e Grafite do Projeto Jovens Caminhos contempla um programa de 12 aulas, capaz de atender a todos os níveis, desde iniciantes até alunos que já dominam técnicas de desenho mais avançadas. As aulas misturam teoria e prática, passando por conceitos básicos como a criação de letreiros na estética característica do grafite, até técnicas mais complexas, como a criação e conceitualização de personagens, representações da anatomia humana, técnicas de perspectiva e dimensão. No aspecto técnico, o curso é pensado para o desenvolvimento das habilidades artísticas tradicionais dos alunos, visando a transição para o uso prático do spray, característico do grafite.

Ao analisarmos os princípios pedagógicos do Projeto Jovens Caminhos, o curso de Artes destaca-se já em um ponto inicial. Por que um curso voltado para o Grafite, especificamente? No planejamento do projeto, as opções eram vastas. Mas, se considerarmos o caráter de formação popular proposto, a escolha de um curso de Grafite, em detrimento de outras formas artísticas já é esclarecedora dos princípios do projeto. Se seguirmos os preceitos de Paulo Freire, um dos pilares de seu pensamento acerca da educação emancipatória é o respeito à autonomia do educando, valorizando também suas culturas, saberes e repertórios sociais. Em sua obra, “Pedagogia da Autonomia”, Freire defende que a figura do professor democrático deve conhecer a realidade dos estudantes, para que o processo de aprendizado dialogue com suas necessidades e desejos.

“Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os da classes populares, chegam a ela – saberes socialmente construídos na prática comunitária – mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos.”[2]

Conforme o autor Celso Gitahy, se buscarmos as principais características da expressão artística do grafite, teremos que trata-se de um movimento surgido nas ruas, de caráter democrático, crítico e subversivo, voltado para as grandes massas. Em suas palavras, é uma expressão que “democratiza e desburocratiza a arte, aproximando-a do homem, sem distinção de raça ou de credo”, que “apropria-se do espaço urbano a fim de discutir, recriar e imprimir a interferência humana na arquitetura da metrópole”[3].

De expressão multicultural, o Grafite busca reapropriar não apenas a cidade, como a Arte em si, tornando-a acessível para todos. Suas origens estão vinculadas ao movimento hip-hop e a expressões populares de contestação, como a pixação. Trata-se de um movimento notoriamente ligado à cultura popular periférica, que ainda nos dias de hoje, é uma forma de Arte ainda contestada e alvo de preconceitos. Mas, sem dúvida, é uma expressão cultural já consolidada na cultura popular urbana, principalmente entre os mais jovens. Além de seu potencial transformador, o fato do grafite ser pertencente ao repertório cultural das comunidades atendidas pelo projeto é um ponto importantíssimo para que a formação desses jovens se dê de forma autônoma e livre. Os alunos se reconhecem nessa forma de expressão, nos professores e nos preceitos do movimento, e isso influencia de forma definitiva não apenas o processo pedagógico, mas a autoestima dos educandos, enquanto artistas em formação.

Acrescente-se o fato de que os professores do curso são eles próprios grafiteiros, oriundos da periferia do município de São Paulo, o que contribui para ampliar nos alunos o sentido do pertencimento e de acolhimento.

O depoimento de Vinícius, aluno de 26 anos que iniciava sua carreira como designer gráfico, expressa essa relação da cultura popular com o grafite, no meio das Artes.

 “Sou designer gráfico e ilustrador e foi maravilhoso participar do curso de grafite, em que eu ainda não tinha trabalhado. Eu sempre fui de “quebrada” e não tinha essa formação, o que chega a ser hilário. Eu sempre trabalhei com o digital, mas a arte que realmente conversa comigo (grafite), só agora que eu fui me iniciar, depois de um pouco mais velho.”

Vinícius,  durante atividade prática de grafite.

Acreditamos que a formação artística, assim como qualquer forma de fomento à cultura, quando parte de uma forma de expressão familiar aos alunos, e portanto pertencente aos seus universos culturais, auxilia a quebrar as barreiras que separam o aluno do professor, o conhecimento acadêmico do popular, ou então, as galerias de arte das ruas. Esse processo corrobora a metodologia de uma educação democrática, capaz de tornar o educando um agente ativo da educação. Essa forma de pedagogia é capaz de empoderar os alunos, principalmente no escopo da arte-educação, interferindo diretamente em sua autoestima, durante a formação de suas identidades.

“O curso de Artes e Grafite me mostrou muitas coisas que eu antes imaginava impossíveis. Em questão da minha carreira, de verdade, o apoio e a luz que os professores me deram, me dizendo: “realmente, você consegue!”, foi uma mudança de chave na minha cabeça, onde eu comecei a ver as coisas como oportunidades. Oportunidades de mostrar minha arte, não apenas pelo dinheiro, mas como forma de me expressar e mostrar pras pessoas quem eu sou, me destacando pela minha arte. Isso foi muito importante pra mim, no (curso do) GEA. Antes, eu nem pensava em fazer uma faculdade nessa área, agora eu cogito esse rumo, porque eu estou vendo que consigo seguir essa carreira, em algo que sou realmente apaixonada em fazer. Então o curso mudou muito a minha forma de enxergar o mundo, principalmente através da Arte. Hoje eu vejo que a Arte pode sim ser transformadora, pode ser uma carreira e é de fato uma profissão que as pessoas devem respeitar”.[4]

 Aluna Gabrielle durante finalização do mural de grafite da turma 06, na região de Jardim Rina – Santo André.

Do ponto de vista da arte-educação, o potencial metodológico do grafite na formação de agentes transformadores está posto. Por essência, trata-se de uma arte de intervenção direta no espaço urbano, ressignificando valores artísticos hegemônicos e principalmente propondo mensagens de mudança, quase sempre carregadas de uma crítica social. Para potencializar esse pressuposto, as oficinas de cidadania do projeto serviam para um espaço de debates sobre questões-chave do meio ambiente e sociedade, onde os alunos eram convidados a participar ativamente das discussões,sobre temas variados, como os hábitos de consumo desenfreados da sociedade capitalista, a valorização dos Direitos Humanos, a necessidade de preservação da água, o acesso – ou falta de – ao saneamento básico, a questão de resíduos e outras temáticas da preservação ambiental. Nessa multidisciplinaridade, que dialogava com o curso , as turmas se expressavam conforme seus próprios anseios e demandas, transmitindo suas reivindicações para os murais de grafite.

Os murais de grafite, desenvolvidos nas próprias comunidades, tinham vários objetivos. Não só permitir que os alunos efetivamente se expressassem e deixassem sua marca no espaço urbano, mas também previam a divulgação de mensagens aprendidas nas oficinas de cidadania e que tinham sido percebidas por eles como temas importantes a serem ressaltados. Além disso, a realização dos murais de grafite se propunha a embelezar e valorizar os espaços desses bairros periféricos.

Dessa forma, acreditamos que o uso do grafite na arte-educação, aliado às perspectivas da pedagogia crítica freireana, que busca a libertação dos indivíduos e os auxilia na luta pelos seus direitos enquanto cidadãos, se revela uma ferramenta potente para a formação não apenas de artistas, mas de agentes transformadores da sociedade, seja em ambiente escolares, como em projetos e cursos de formação como o Jovens Caminhos. Vimos que, para além da capacitação técnica, a utilização de uma pedagogia que abrace a cultura popular é crucial para a formação da identidade dos alunos, que podem desenvolver a consciência crítica necessária para os enfrentamentos do mundo contemporâneo. 

Turma de Santo André, após término do último mural de grafite.

Murilo Giaccheri Ceglauskis,

Bacharel em História pela Universidade de São Paulo.


[1] FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. 12. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1983, p.16.

[2] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p.31

[3] GITAHY, Celso . O que é Grafite. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.18

[4] Depoimento da aluna Gabrielle, de 16 anos.

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